domingo, 29 de novembro de 2009

1968: Hobsbawm, Foucault e a “revolução” do cotidiano.

*Trabalho de conclusão da disciplina "Sociologia da Pós-modernidade", prof. Luís Carlos Fridman, UFF. Infelizmente não consegui incluir as notas de rodapé.

Introdução

O presente trabalho pretende fazer uma aproximação ao tema das interpretações sobre os levantes estudantis na França, em 1968. Em sua primeira parte, centraremos a discussão no relato que Eric Hobsbawm, historiador marxista ligado ao Partido Comunista inglês que presenciou tais revoltas, fez em sua autobiografia Tempos Interessantes. O fio condutor da discussão será encontrar dentro do relato de ceticismo de Hobsbawm a influencia de sua própria produção teórica e historiográfica. Tentaremos levantar críticas a ela a partir de outro autor marxista que muito contribuiu para o revisionismo do estruturalismo de Althusser e para a historiografia das revoltas e movimentos sociais, Edward P. Thompson.
Num segundo momento, discutiremos, a partir de um manifesto escrito por estudantes de Estrasburgo e situacionistas em 1966 e uma conferência de Michel Foucault no Collège de France em 1976, a efetiva ebulição do meio estudantil francês na década de 1960 e uma alternativa teórica muito interessante para se entendê-la.

Primeira parte

Eric J. Hobsbawm, assim como outros historiadores do século XX, contribuiu e muito para os estudos sobre as revoltas e o protesto popular em sociedades pré-capitalistas ou de capitalismo nascente. Seu célebre ensaio de 1959, Rebeldes Primitivos – na verdade uma compilação de artigos e estudos a respeito de movimentos milenaristas, banditismo social, a Máfia, turbas revoltosas e seitas –, será nosso ponto de partida. Os termos usados pelo autor – movimentos e pessoas “pré-políticos”, “arcaicos” – são emblemáticos para se entender sua perplexidade e o “descrédito” em relação às manifestações estudantis de Paris, em 1968.
Hobsbawm demonstra nesta obra uma preocupação em resgatar a história de homens e mulheres que por muitos anos foram negligenciados pela historiografia, sendo classificados como “fanáticos religiosos” ou simples bandidos, transgressores da Lei e da ordem. Alude a necessidade de estudos sistemáticos sobre tais movimentos, e que só assim se terá a percepção da complexidade de ações coletivas destes tipos. Logo o autor percebe que muitos destes movimentos estão muito longe de terem um caráter de superação e rompimento com tradições de opressão – o que se poderia pensar de uma turba camponesa revoltada contra um proprietário. Pelo contrário, grande parte deles, na tentativa de sua legitimação, buscarão evocar essas tradições contra novas tendências nas relações entre pobres e ricos, proprietários e não-proprietários. Com o surgimento do capitalismo e as mudanças que provoca nas relações produtivas, os movimentos camponeses, invocando um sentimento de justiça arraigado na tradição, se levantarão não contra a propriedade privada, mas contra o alargamento da dominação e da opressão requeridas pelas relações capitalistas – invocarão um tempo onde a dominação era “mais branda”, ou pelo menos os costumes colocavam freio nas ações dos proprietários. (HOBSBAWM, 1970, pp. 16-18). Desse quadro, para autor, surge o bandido social, ou aquele indivíduo que, como um Robin Hood, tratará de reequilibrar a relação entre dominantes e dominados através da ação bandoleira, do roubo, porém com uma legitimidade dada pela tradição do que “era justo” e está sendo deturpado pelos proprietários.
No entanto, a falta de uma organização e programa “políticos” claros nesses movimentos de pessoas que em sua maioria “não só não escrevem como não lêem muitos livros – muitas vezes porque são analfabetas” – fez com que Hobsbawm elaborasse o termo “pré-político” – duramente criticado pela atual historiografia dos movimentos políticos e sociais –, para se referir a esses fenômenos. (Idem, pp. 13). Cabe lembrar que à época em que lançou seu trabalho, Hobsbawm encontrava nos círculos marxistas das ciências humanas discussões que giravam em torno muito mais da consciência de classe e da organização e liderança partidária, o que certamente influenciou na sua percepção. Desta forma fica fácil entender que seus Rebeldes Primitivos pecavam justamente nos aspectos mais importantes de uma “autêntica” organização revolucionária: na maioria das vezes não estavam inteiramente a par da sua inserção social, da sua situação, de sua classe; e, em decorrência disso, estavam impossibilitados de pensar em uma verdadeira mudança revolucionária de suas condições de vida. Comparados sempre com as organizações operárias modernas do século XX, eles estavam sempre em desvantagem, pois sua luta pelo poder não poderia ser total, reduzindo-se a demandas “menores”, para o autor.
Em maio de 1968 acontecia um congresso sobre o pensamento de Marx, comemorando o sesquicentenário do nascimento do autor – um encontro cheio de “monografias extremamente tediosas sem qualquer interesse” onde “os participantes se sentiam estimulados a deixar o salão de conferências e ir passear nas ruas” (HOBSBAWM, 2002, pp. 274). Simultaneamente, os jovens parisienses levantavam suas barricadas e entravam em confronto com a polícia, gritando palavras de ordem, e com slogans emancipatórios – “Jouissez sans entraves” e “LSD tout de suíte!”. Apesar da empolgação que os tumultos causariam em Hobsbawm e outros pensadores de esquerda no mundo todo, o já conceituado historiador marxista admitiria: “interpretei mal o significado histórico da década de 1960”. (Idem, pp.279).
Na verdade, acreditamos que Hobsbawm olhou de maneira anacrônica e, até certo ponto preconceituosa mesmo, para as revoltas de maio de 1968, ainda que reconhecesse que os anos de 1960 foram realmente anos de grande transformação. O que o fez ver com ceticismo aqueles acontecimentos foram os mesmos elementos que fizeram com que outros intelectuais de esquerda olhassem com ressalvas parecidas. É o caso de Raymond Aron, citado por Hobsbawm mesmo, que concluiu “que eles não tinham objetivo algum: 1968 deveria ser entendido como um teatro de rua coletivo, um ‘psicodrama’ ou ‘delírio verbal’, porque era simplesmente “uma colossal libertação de sentimentos reprimidos” (Idem, pp. 278). Mais uma vez o elemento essencial neste tipo de análise do movimento era o aparecimento ou não de algum tipo de organização e objetivos políticos, no meio das revoltas. O grande problema era a concepção de “político” que estes intelectuais defendiam: algo muito ligado a atmosfera da intelectualidade de esquerda da época, ligada ao Parido Comunista e as discussões sobre os programas e a organização dos partidos e sindicatos operários.
Como em Rebeldes Primitivos, Hobsbawm procurou nas revoltas estudantis um certo “tipo ideal” (por mais contraditório que um conceito weberiano possa parecer dentro da análise de um marxista) de manifestação de demandas políticas. Assim como não conseguiu perceber que no século XIX e inicio do XX seus rebeldes batalharam politicamente com as “armas” de seu tempo que dispunham, ele também não compreendeu – pelo menos não imediatamente – que “O que é pessoal é político” (Idem, pp. 279), que outras instâncias da vida, durante a década de 1960 estavam se politizando com uma rapidez tremenda. Não era, evidentemente, fácil para um pensador marxista, nos anos 60, enxergar a “revolução” em manifestantes que “não pareciam estar muito interessados num ideal social, comunista ou de outro tipo, distinto do ideal individualista de livrar-se de tudo o que se arrogasse o direito e o poder de impedir-nos de fazer o que nosso ego ou id desejasse fazer” (Idem, pp. 278). Hobsbawm via nas manifestações contra a repressão sexual, pelo uso de drogas e pela liberdade em suas mais variadas formas, uma falta de clareza quanto à consciência destes estudantis a respeito de sua situação em quanto classe ou grupo social. Em outras palavras, se não desejavam a derrubada ou a transformação das relações sociais propulsoras do sistema capitalista (as relações de produção, a propriedade privada) logo não estavam lutando por uma transformação real ou eficaz, mas apenas tangencialmente tocavam na questão do poder e da dominação.
Entender o protesto enquanto forma de recurso político e de pressão sobre o Estado e a sociedade. O que Hobsbawm só entenderia anos depois de 1968 é que aqueles jovens queriam sim uma grande revolução, mas não queriam esperar por partidos, organizações, esquerdistas, etc.; por um programa político de derrubada total dos poderes estabelecidos e das relações de produção. Queriam algo mais imediato. A derrubada do capitalismo era algo a muito discutido e tentado, onde possivelmente aqueles jovens só viam conjecturas de uma intelectualidade quase inerte, enfiada dentro de congressos como o que acontecia em Paris naquela mesma ocasião. Queriam uma revolução das relações pessoais, queriam se levantar contra todas as formas de autoritarismo, enfim, destruir “padrões tradicionais de relacionamento entre pessoas e comportamento pessoal dentro da sociedade existente (Idem, pp. 279). A esse assunto voltaremos logo.
Por fim, acreditamos que cabe apresentar uma crítica ao momento histórico da produção marxista nos anos 1960, a qual, pelo menos indiretamente, também influenciou as concepções de Hobsbawm. A corrente estruturalista do marxismo, encabeçada, dentre outros, pelo filósofo Louis Althusser (1918-1990), era a grande base da maioria das análises marxistas mais ortodoxas. Resumidamente, e seguindo a crítica de E. P. Thompson, essa vertente via a relação entre infra-estrutura econômica e superestrutura social de forma a-histórica, não dialética. Deste modo, as formas superestruturais (direito, política, cultura, etc.) estavam atadas fatalmente a configuração da economia real, ou seja, as relações de produção e a dominação de classe. Não havendo assim margem para a manobra política dentro da sociedade capitalista. Em uma de suas obras clássicas, Senhores e Caçadores, Thompson debate diretamente com essa vertente mecanicista. No texto de Thompson o Direito, longe de se apresentar como uma simples máscara ideológica burguesa, se transformará em uma arena de conflitos entre as classes. A Lei, pela sua pretensão liberal de universalidade (vale para todos, sem exceção), funciona não apenas como uma arma das classes dominantes para assegurar a propriedade e a ordem, mas, em decorrência desse caráter universal, a Lei pode e de fato coloca obstáculos na própria dominação de classe que tenta perpetuar, abrindo espaço para discussões e tensões, onde o lado vitorioso (pobres ou ricos) não é imediatamente vislumbrado (THOMPSON, 1987, pp. 352-356). Analisando a relação entre base e superestrutura a partir do materialismo histórico, o autor pode de fato ir até os atores sociais com questões que não estão previamente esclarecidas de forma mecânica e estrutural pela dominação de classe. Mostra dessa forma que esta interação não é um dado imutável, e que, confirmando o que Engels e Marx sempre defenderam, o materialismo histórico é uma ferramenta de trabalho para o estudo da história humana, e não uma camisa de força teórica onde se enfiaria esta mesma história (THOMPSON, 1981, pp. 9-13).


Segunda parte

Percorrido o caminho para a explicação das categorias teóricas que estavam embutidas na percepção de Hobsbawm sobre as revoltas de estudantes em Paris em maio de 1968, faremos um esforço no sentido de entender os motivos reais e sentimentos desses jovens. Para tal, discutiremos, na medida do possível, uma espécie de texto-manifesto escrito por membros da Internacional Situacionista e estudantes da Universidade de Estrasburgo (região de Alsácia-Lorena, fronteira franco-alemã), no ano de 1966. Acreditamos que tal “documento” pode nos dar uma dimensão, se não exata, pelo menos capaz de aludir ao momento sócio-político destes jovens; suas insatisfações em relação ao sistema de ensino (ou o “ensino do sistema”); à política partidária; ao autoritarismo das instituições francesas; e seu descrédito e insatisfação frente ao próprio estudante francês.
O texto é dividido em três partes: a primeira delas, e a que mais nos interessa, discute exatamente às angústias e problemas já mencionados ; a segunda parte dá conta de fazer um balanço dos movimentos da juventude pela transformação social em todo o mundo, além de chamar a atenção para as apropriações que o próprio sistema mercantil capitalista faz desses movimentos, através da mídia, do mercado de trabalho, etc. ; a terceira e última parte é elucidativa do grau de politização e das aspirações revolucionárias desta juventude. A união operário-estudantil é defendida frente a correntes atomizadoras dos dois movimentos e segregacionistas; trata de aproximar as duas causas enquanto causas de transformação total das relações produtivas do capitalismo.
A crítica comportamental, que perpassa toda a primeira parte do texto é fundamental para nossa aproximação neste trabalho:

"Numa época em que uma parte crescente da juventude se liberta cada vez mais dos preconceitos morais e da autoridade familiar para participar, e bem cedo, das relações de exploração declarada, o estudante mantém-se ainda, a todos os níveis, numa "minoria prolongada", irresponsável e dócil. Se a sua tardia crise juvenil o opõe um tanto à família, ele aceita facilmente ser tratado como criança nas diversas instituições que regem a sua vida quotidiana." (Da miséria..., 1983, pp. 2).

A repulsa ao autoritarismo institucional cotidiano é bem clara. Apesar da revolta frente o tradicionalismo familiar, típico da juventude da década de 1960, na “sua nova família, a Universidade, ele supõe-se o mais ‘autônomo’ dos seres sociais, quando, pelo contrário, depende direta e conjuntamente dos dois mais poderosos sistemas de autoridade social: a família e o Estado” (Idem, pp. 3).
A situação concreta do estudante enquanto ser social em processo de preparo para o capitalismo também é problematizada. Segundo o texto sua falta de consciência frente ao ensino institucional da Universidade e a crescente tecnocratização deste ensino, é prova de sua ignorância e descaso frente os rumos tomados pela sociedade mercantil

"Que a Universidade se tenha tornado uma organização – institucional – da ignorância, que a própria "alta cultura" se dissolva ao ritmo da produção em série dos professores, que todos estes professores sejam uns cretinos, de tal modo que a maior parte dentre eles provocaria a algazarra de qualquer público de liceu -, tudo isso o ignora o estudante; e, respeitosamente, continua a escutar os seus mestres, com a vontade consciente de perder todo e qualquer espírito crítico, a fim de melhor comungar na ilusão mística de se ter tornado um "estudante", isto é, alguém que seriamente se ocupa na aprendizagem de um saber sério, na expectativa de assim lhe serem confiadas às últimas verdades. Trata-se, aqui, de uma menopausa do espírito" (Idem, pp. 4).

Um último ponto merece ser mostrado no texto, antes de uma análise mais teórica desse pensamento. Os movimentos e organizações estudantis ligados a organizações partidárias de esquerda também são alvo de duras palavras durante todo o libelo. “Mais sérios, e por conseguinte mais perigosos, são os modernistas da esquerda e os da UNEF conduzidos pelos ultras da FGEL, que reivindicam uma ‘reforma de estrutura da Universidade’, uma ‘reinserção da Universidade na vida social e econômica’, quer dizer, a sua adaptação às necessidades do capitalismo moderno” (Idem, pp. 4). Uma discussão tão atual, mas que tem suas raízes neste momento de renovação crítica e revolução cultural dos anos 1960. Os partidos e organizações ditas de esquerda, segundo o texto, longe de estarem lutando por frear a entrada maciça e a consolidação da lógica mercantil nas universidades, reclamavam a demora de tais reformas neo-liberais. “São eles os defensores da futura universidade cibernetizada que, aqui e ali, se anuncia já. O sistema mercantil e seus servidores modernos, eis o inimigo” (Idem, pp. 4).
Não é nossa intenção julgar a dureza destas palavras. O que queremos é mostrar o clima de insatisfação de uma boa parcela do corpo estudantil francês que, alinhada com a crítica situacionista, tomaria a frente das manifestações de maio de 1968. Mais do que isso, o tipo de revolta que manifestavam – a revolta contra a autoridade, contra o comportamento, o cotidiano de dominação – estava alinhada também com o pensamento de uma grande intelectual, filho deste tempo: Michel Foucault.
Apesar da consciência da dominação global exercia pelo sistema mercantil – a economia real, as relações produtivas –, a revolta estudantil não foi dirigida diretamente (ou pelo menos é assim que a entendemos) ao centro do poder econômico, às grandes corporações multinacionais, etc. Ao invés disso, e é aí que o alinhamento com Foucault fica mais claro, a revolta dos jovens franceses bateu de frente com a dominação exercida nas extremidades do sistema: na Universidade, na família, nas relações sócias cotidianas que disseminavam pelo corpo social, através das instituições, o poder e a dominação real. Foucault dizia:

"(...) o importante é que não se deve fazer uma espécie de dedução do poder que partiria do centro e que tentaria ver até onde ele se prolonga por baixo, em que medida ele se reproduz, ele se reconduz até os elementos mais atomísticos da sociedade. Creio que é preciso (...) fazer uma análise ascendente do poder, ou seja, partir dos mecanismos infinitesimais, os quais têm sua própria história, seu próprio trajeto, sua própria técnica e tática, e depois ver como esses mecanismos de poder (...) foram e ainda são investidos, colonizados, utilizados, inflectidos, transformados, deslocados, estendidos, etc., por mecanismos cada vez mais gerais e por formas de dominação global. Não é a dominação global que se pluraliza e repercute até em baixo." (FOUCAULT, 2002, pp. 36) .

A proposta de Foucault, claramente indo de encontro à análise marxista mais rígida e estrutural (de “engessamento” do materialismo histórico), nos lembra que as formas e técnicas de dominação que existem disseminadas pelo corpo social em determinado tempo não decorrem mecanicamente da dominação classista, ou de um poder central caracterizado pela hegemonia de um grupo. Se afastando dessa concepção, vemos que o autor propõe o contrário: essa dedução esconde toda uma história das formas de dominação e sujeição entre os atores sociais sob o reducionismo da dominação de classe. O que temos que perceber e investigar é em que momento essas técnicas (vigilância, punição, exclusão, repressão, etc.) e procedimentos se tornaram econômica e politicamente interessantes à classe dominante para serem então apropriados por seu discurso, legitimados e legitimando sua dominação global. Teríamos que ver até que ponto essas práticas institucionais, que habitam as extremidades da dominação do poder central, estão relacionadas com esse poder, em que grau estão submetidas a ele, qual sua autonomia real, etc. (Idem, pp. 35-40).
É nas instituições e nas formas de sujeição a discursos de verdade (saberes) produzidos por elas que se deve procurar vislumbrar o movimento do poder. Não se trata de maneira alguma, então, dizer que o poder é algo democraticamente distribuído pela sociedade, pelos diferentes indivíduos. Ele pode não ter uma centro “emanador”, mas sim um centro “apropriador”.
Voltemos então ao texto-manifesto, onde se pode encontrar mais um ponto de encontro entre as idéias de Foucault e a revolta estudantil:

"Os partidários da boêmia no seio dos estudantes (e todos se gabam de o ser um pouco) limitam-se, pois se agarrar a uma versão artificial e degradada do que não passa, e no melhor dos casos, duma medíocre solução individual. Até o desprezo das velhinhas provincianas, por isso, eles merecem. Estes "originais" continuam, trinta anos depois do que fez esse excelente educador da juventude que foi Wilhelm Reich, a ter os comportamentos eróticoamorosos mais tradicionais, reproduzindo as relações genéricas da sociedade de classes nas suas relações intersexuais. (...) Aprova todas as separações, e vai depois gemer para círculos diversos – religiosos, desportivos, políticos ou sindicais – sobre a não-comunicação. É tão burro e tão infeliz que chega espontaneamente e em massa a confiar-se ao controlo para-policial dos psiquiatras e psicólogos, controlo este para seu uso organizado pela vanguarda da opressão moderna e, por conseguinte, aplaudido pelos seus "representantes", que naturalmente nestes Serviços de Apoio Psicológico Universitário (SAPU) vêem uma conquista indispensável e merecida." (Da miséria... pp. 5)

Para além do repúdio à repressão sexual, emblemático daquele momento histórico, vemos também a consciência do exercício do poder e da dominação através da sujeição ao saber clínico das ciências humanas, seu discurso de verdade que estabelece uma relação de dominação entre psicólogos e estudantes/pacientes. Diria Foucault que numa sociedade complexa como a nossa o poder não pode ser exercido sem um discurso de verdade, um saber. A partir do século XVIII em especial, surge uma nova forma de exercício do poder que não mais estava ligada a legitimação da soberania real e da obediência do súdito. Este poder

"(...) permite extrair dos corpos tempo e trabalho, mais do que bens e riqueza. É um tipo de poder que se exerce continuamente por vigilância e não de forma descontínua por sistemas de tributos e de obrigações crônicas. É um tipo de poder que pressupõe muito mais uma trama cerrada de coerções materiais do que a existência física de um soberano, e define uma nova economia de poder cujo princípio é o de que se deve ao mesmo tempo fazer que cresçam as forças sujeitas e a força e a eficácia daquilo que as sujeita." (FOUCAULT, op. cit., pp. 42.)

Este novo poder ao qual Foucault se refere é o poder “disciplinar”. Esta “invenção da sociedade burguesa” deturpou todo o discurso jurídico em torno da soberania do monarca, transformando essa soberania em uma soberania do povo, delegada ao Estado. Logo, o poder que emanava do topo disseminou-se pelo corpo social perdendo seu caráter vertical, tornando-se horizontalmente exercido. Os mecanismos de coerção disciplinar que já existiam foram apropriados por esse novo discurso jurídico da soberania do corpo social. A coerção por meio da permanente vigilância e da disciplina, que era contrária a soberania monárquica, encontraram na soberania do Estado – sustentada pelo código jurídico liberal – a legitimidade necessária para o desenvolvimento da “sociedade disciplinar” (Idem, pp. 43-45). Ora, isto tem muito a ver com os anseios de fuga de uma normatização constante da vida social, através das disciplinas e seu discurso de verdade, que defendiam os estudantes franceses da década de 1960. A pressão de que queriam escapar era a pressão disciplinar institucional, a dominação pulverizada nas relações sociais horizontalmente, etc. Qualquer tentativa de fuga dessa normatização dada pelas disciplinas, pelas instituições, pelo saber clínico, era tratada com repressão, exclusão, punição. Desta forma, combatiam o poder disciplinar, os mecanismos que agiam nas extremidades da sociedade e que legitimavam, cotidianamente, a dominação geral.

Conclusão

Antes de mais nada, reconhecemos a limitação deste trabalho quanto a exploração da bibliografia, que poderia ter sido melhor abordada. Mas lembramos que o tema está muito longe de um esgotamento, e que nossa intenção foi apenas de uma aproximação.
Ao fim do trabalho, constatamos, de maneira geral, que as revoltas estudantis de maio de 1968 dificilmente poderiam ter sido vistas por Hobsbawm com maior “otimismo” no calor da hora. Suas categorias de entendimento a respeito das lutas contra e pelo poder pecavam em ver a revolta estudantil enquanto uma rebelião contra noções, saberes e poderes muito bem estabelecidos em nossa sociedade e que têm uma relação estreita, porém não mecânica e automática, com a dominação geral do modo de produção capitalista e da sociedade burguesa. No entanto, escrevendo 30 anos aqueles acontecimentos, o velho historiador marxista reconhece que o que houve foi uma grande revolução cultural, das formas de comportamento, das relações sociais, e que de fato a derrubada do regime fortemente repressivo de De Gaulle deveu muito àqueles revoltosos.
As críticas que apontamos ao autor estão longe de serem críticas de cunho pessoal ou político, porém apenas analíticas. A importância da obra de Hobsbawm para a história dos movimentos sociais e da sociedade contemporânea está fora de qualquer discussão. A renovação historiográfica subseqüente neste campo lhe deve muito.
Seguindo, encontramos no pensamento de Foucault algum tipo de coerência teórico-metodológica que permitiu localizar o autor enquanto um “filho” da década de 1960. Entendemos que seu pensamento, senão explicitamente defendido por aqueles estudantes descontentes e insatisfeitos, fez-se vivo em seu manifesto e em sua prática revolucionária.
Por último, mas não menos importante, acreditamos que as análises marxista e foucaultiana aqui minimamente expostas não se excluem mutuamente. O que percebemos são escolhas e perspectivas diferentes; que na verdade neste trabalho elas apareceram de forma muito complementar.

Bibliografia:

Da miséria no meio estudantil considerada nos seus aspectos econômico, político, sexual e especialmente intelectual e de alguns meios para prevenir (Título original: De la misere en milieu étudiant considérée sous ses aspects économique, politique,sexuel et notamment intellectuel et de quelques moyens d’y remédier. 1ª Ed.: Estrasburgo, 1966) Coimbra: Fenda Edições, 1983.

FOUCAULT, Michel. “Aula de 14 de Janeiro de 1976” in: Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2002.

HOBSBAWM, Eric J. Rebeldes Primitivos. Estudos sobre as formas arcaicas dos movimentos sociais nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.

___________________. Tempos interessantes. Uma vida no século XX. São Paulo: Companhia. das Letras, 2002.

THOMPSON, Edward Palmer. A Miséria da Teoria ou um planetário de erros. Uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.

_________________________. “Conseqüências e Conclusões” in: Senhores e Caçadores. Col. Oficinas da História nº. 7. São Paulo: Paz e Terra, 1987.

ZAPPA, Regina; SOTO, Ernesto. “Apresentação” in: 1968. Eles só queriam mudar o mundo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2008.

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